Há uma pequena loja nas Amoreiras de que gosto particularmente: A
Café, Thé & Chocolat é uma pequena preciosidade onde encontro algumas das raridades que fazem com que dias friorentos e chuvosos como o de hoje tenham um sabor único e delicioso.
Ontem de manhã (já foi ontem?) lá arrastei o meu corpo sonolento (e outras coisas acabadas em -ento como friorento ou decrépito) e fui beber um revitalizante chá matinal.
Só de me lembrar da fumarenta textura do Lapsang Souchong todo o meu corpo começou a suspirar pelo doce pousar dos lábios na redentora (e em demasia salvadora) chávena e o consequente contacto com o precioso líquido.
Sentei-me e pedi sofregamente um Lapsang Souchong.
Do outro lado do balcão apanhei uma nativa do nordeste brasileiro que me respondeu com um "hein?" genuíno e puro.
Percebo.
Se me dissessem semelhante palavrão logo pela manhã (e ainda mais num domingo), confesso que arriscariam seriamente a vossa vida. Ou pelo menos a vossa sanidade e pureza mental.
Embuído do mais puro espírito natalício, repeti de forma doce estas duas palavras mágicas (repitam-nas vós mesmos para o écrão do vosso computador, sff): Lapsang Souchong.
- Oi?
- Vem na lista.
- Já não tem lista.
- Laaaaaapsang Soouuuucccchhhonnng (imaginem os contornos labiais a desafiarem as mais ousadas leis da gravidade enquanto pronunciava uma vez mais o nome de tão meu amado chá).
- Hmmm. Isso é chá quê?
- Preto, minha senhora, preto (nesta altura comecei a demonstrar alguma impaciência rancorosa na minha voz, mas percebe-se, não?)
- Hmmm. Esse não 'tou a ver não. Mas esse Ceylon sai bem. Tem muita gente que o bebe.
Neste momento dramático em que todos os leitores já estarão dispostos a fazer uma romaria ao Pereira da Rua Garrett para me comprar 20g de Lapsang Souchong bastante aceitável, quero deixar bem claro que começaram a haver vidas humanas em cheque.
- Olhe, dê-me um Porto Formoso - grunhi eu apontando para a caixa que continha essas não menos preciosas ervas.
- Olhe que tem aqui uns bem cheirosinhos.
Foi a gota de água. Os meus olhos começaram a irradiar sangue fervoroso e quem acabou por pagar foi a capa de O Que Diz Molero que se encontrava à mercê dos meus dedos nervosos. Não fosse o livro da Biblioteca e o mesmo teria tido um encontro imediato com a cara da pobre senhora (sim, ainda respeito as instituições. Pelo menos aquela onde trabalho, o que acaba por não ser mau de todo).
- Porto. Formoso. Ali. Quero. (preciso, desejo, anseio, tremo, seria capaz de matar por, despache-se por amor de Deus)
- Esse aí, né?
Talvez alertada pelo meu olhar de pobre simplório que nem sempre consegue esconder o que sente, a nordestina nem esperou pela minha resposta.
Fez bem.
Depois de saciada a minha premente fúria, dei por mim e pela minha tremenda consciência católica (está melhor, está melhor) arrependido de tão vil tratamento a um ser humano meu igual.
Estava eu a preparar-me para impor no meu rosto o ar de Madalena arrependida, quando assisto de lugar privilegiado ao desespero de uma senhora em pedir um Colômbia particularmente fraco (acabando por se desintegrar num berro desesperado de "Dê-me mas é um descafeinado!!!) e de um amoroso casal de velhotes cujo pedido de chocolate italiano foi confundido ad etaernum por pralinés, deixando-se eles ficar por dois cafés simples. " Daqueles normais minha menina".´
Perante tamanho espectáculo, consumi as 20 páginas que me separavam do ansiado final e parti rumo à vida normal de olhos despertos, mesmo a tempo de me cruzar com o Mário Zambujal e de o cumprimentar como se o conhecesse (coisas de quem mora em terras pequenas como Grândola).
À pobre nordestina, não lhe auguro uma carreira tão promissora quanto a de Luisão no centro da defesa do Benfica.
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