NO seguimento dos pecados mortais que ando a ecoar, aqui fica a gula:

A gula.
A gula só pode fazer parte do prazer de viver. Sem gula a minha vida nada mais seria do que uma vida sem prazer.
Quantas vezes não consegui resistir à doce tentação de continuar a comer desalmadamente quando já todo os meus sentidos sensoriais apontam que não aguento mais.
Contudo, ao contrário de muitos radicais fundamentalistas, não defendo a comida desta região até à exaustão como sendo de excelência única. Defendo umas migas de bacalhau, da mesma maneira que defendo uma morcela de arroz da Beira, ou uma posta mirandesa, ou até uma alheira (repare-se como a minha tolerância interecuménica se manifesta até na comida). Mas também não quero que se pense que só a comida portuguesa é que desperta a gula raramente adormecida em mim: um bom pita shoarma, uma favada asturiana, um rack of ribs, um apfelstrudel, tudo isto é capaz de despertar a minha gula.
Mas, não obstante esta minha gula desmesurada por comida e algumas bebidas (que evidentemente têm que acompanhar as refeições), resolvi subvertê-la, alargando-a a todos os outros prazeres da minha vida: a leitura, a música e o viver em si.
Sempre que estou a aproximar-me do fim de um livro, já só consigo pensar no próximo. Quando demoro mais de uma semana para ler um livro, começo a sentir pequenas alterações psicossomáticas que me alertam para a urgência de começar um outro. O mesmo se passa com a música. Mas aí, sinto um aperto ao saber que alguém de quem possa remotamente gostar lançou um álbum que ainda não ouvi. Pois então não descanso até o conseguir ouvir e desconstruir, formando uma opinião mais ou menos consistente sobre o que quer que seja. Isto acontece cada dois dias (aproximadamente).
Quanto à vida… só costumo sentir o tempo passar.
Contudo, posso concluir que o crescer desta minha gula me conduziu a uma angústia profunda, pois todos os dias me lembro da minha condição tristemente humana.

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